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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

fim

Quando o cachorro está para morrer
Ele perde o apetite
E não sai de sua cama

Eu perdi o apetite
E não saio da cama
Eu quero morrer
Mas não sou cachorro

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Estava no carro olhando para a janela para esconder o rosto. eu tentava engolir o choro e falhava miseravelmente nisso. Lembrei de uma vez que fiz exatamente o mesmo por sua culpa. Sempre que engulo o choro, me calo como uma muda, escondo meus sentimentos, eu me lembro de você. Pai, desde um bom tempo eu tento encontrar em você a criança sorridente carregando um cachorro como na foto que uma vez a vó me mostrou. Na caixinha de tesouros das memórias dela tinham outras fotografias e de todos os filhos dela, você era o único que resolveu tirar a foto com um cachorro. Desde então tenho tentado buscar essa criança dentro de você. É por certo que eu te amo. É por certo que você é um ótimo pai. Mas tenho flashes de vários momentos seus que não agradam, que são memórias ruins, que são feridas abertas deixadas de canto, ignoradas, até um certo tipo de momento que todas elas voltam de uma vez. Eu me acostumei em não receber elogios, em saber que o que faço é bom, correto, ético, competente, por mim mesma. Não é só porque você não reconhece, mas porque eu prefiro não te contar muita coisa, porque você consegue encontrar meios de censurar até mesmo o que eu achava que era algo bom. O que me dói é que eu não sei se você me ama, como sempre diz nos momentos de briga para me fazer me sentir mal. Eu não sei o que é o amor para você, na verdade. Você se preocupa, você cuida, você tem medo, você controla, você constrange, você quer impor sempre a sua visão. Você não me conhece, e nem se conhecesse me amaria por isso. Você me ama porque sou sua filha, porque é o seu dever. Você só ama alguém por alguma razão que ache que deva amar.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Chegamos mais longe do que qualquer coisa que já passei. Estou assustada, feliz, mas assustada. Assutada por você, pela primeira vez. Antes tinha medo de ser anulada, de ser mudada, em sentidos da transcendentalidade que não gostaria de alterar. Bati o pé, me mantive. Depois tive medo de ser anulada, de ser mudada, em sentidos da mundanidade que não gostaria de alterar. Bati o pé, me mantive. Agora dou de cara com você. O perigo sou eu. O problema não é mais pensar se serei feliz, mas se vou te fazer feliz. Tenho medo do meu eu futuro, de repetir por diversas vezes meus acontecimentos originais nesse presente eterno, de não me curar, de não enterrar o passado. De me transformar naquilo que rejeito, mas que me habita desde antes mesmo de eu conhecer a mim mesma. Você é amor, você é cuidado, você é paciência, você é abraço. Você é tudo isso, porque você não fala sobre isso, porque você nem sequer deve se dar conta disso. Enquanto isso eu sou eu, a bagunça, a erupção inesperada, eu sou o pensamento, eu sou o controle. Eu sou a solidão, a imersão, o buraco.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

piano

Eu poderia te ouvir tocar para sempre
Você transforma qualquer tecla que eu aperte em música
Seus dedos alternam entre a leveza e a dureza necessária
Seus olhos ora fixos, ora fechados
Você põe tudo o que é nesse instrumento
Sua alma se confunde com o material
E o seu som ecoa dentro de mim e pela cidade

quarta-feira, 2 de maio de 2018

O seu amor tem gosto de liberdade
de América latina, de revolução
O seu amor é novidade
Tem a pureza da infância,
o privilégio de não querer saber
para poder aprender.

O meu amor tem ânsia
de buscar o que não se pode dar
Tem gosto de querer se libertar
e não conseguir
De querer crescer
e ser sempre vista como criança

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Sobre momentos mal digeridos

Um dia estávamos nós, novos namorados, a beira da praia. A praia não era lá aquelas coisas, não mesmo, mas para uma mente que às vezes se vê como romântica bastava. Era praia, enfim: tinha areia, mar, bichinhos assutadores cavando terra a dentro,  e outros ainda mais assustadores nadando pelas águas. O dia foi bom, os dias já estavam sendo bons. Eu te vendo o dia todo sabendo que assim seria por mais um tempo. Mas sim, estávamos a beira-mar. Tínhamos dado uma corrida para o lado da praia que tinha menos gente, como se isso fosse possível para aquela praia. Você estava falando sobre nós, sobre como se sentia em relação a mim. Como casais recentes fazem eu tentei completar uma frase que você não sabia como continuar. O tempo estava tão solar, eu, você, olho a olho, mão sobre mão. Falei com toda o semblante de alguém que sabe o que diz que eu te completava e vice-versa. Afinal, paixão demanda frases assim, não é? Você conseguiu jogar um balde com água mais fria que as águas do mesmo mar em terras além-mar que não era isso, não mesmo. Eu transparente que sou, e não estou falando baseada só pela minha cor de pele, sinalizei tão sutilmente como aqueles sinalizadores de filmes sobre náufragos podem ser, que não tinha gostado da resposta. Com toda a minha dificuldade de falar sobre como me sinto, consegui afinal falar o quanto você tinha quebrado o clima, embora eu tenha concordado com a sua justificativa, embora ainda achasse que as pessoas tenham que dizer de vez em quando umas frases apenas porque são bonitinhas, embora eu não seja exatamente uma pessoa fofa, embora as pessoas achem que sou a julgar pela minha aparência. Com toda minha habilidade de fugir de assuntos embaraçosos propus que voltássemos correndo. Mesmo geralmente não aguentando nem 30 segundos de corrida, consegui correr o mais rápido possível daquela situação. Lembro que por essa e outras, escrevi um poema que nunca mostrei para ninguém, como de costume, sobre uma poesia que talvez você gostasse. Ela falava mais ou menos sobre como eu poderia viver muito bem sem ter te conhecido, como eu no fundo não preciso de você agora, sobre a real incerteza de nós sermos o amor de cada respectiva vida, sobre como não somos daqui até a eternidade, porque afinal quem sabe por certo como é a eternidade? Não sei exatamente porque estou escrevendo isso agora, talvez porque o momento tenha passado e talvez porque eu agora esteja vendo o lado bom de você ser tão racional às vezes, mesmo que essa característica tenha me impedido de escrever muito sobre você e mais ainda de ter te mostrado as coisas que escrevo. A verdade é que não me vejo mais na maioria dos meus textos e não quero mais escrever coisas só por escrever, porque são "poéticas", porque dizem coisas sobre o que acho que o amor é. Já me enganei algumas várias vezes, sabe. Não quero um amor que traz morte, como em Shakespeare, ou com o amor que a indústria cultural quer nos definir e enfiar goela acima, ou um amor que é arma para os manipuladores. Não quero descobrir sobre nós em uma música ou poema já prontos, não quero que o que eu escreva seja maior do que nós somos. Quero, e sei que é o que você quer também, é descobrir sobre o amor que é de fato maior que nós, aquele que em verdade nos completa por inteiro, aquele que fez você superar quando achava que uma pessoa que te completava se foi, aquele que me fez sacrificar a experiência mais intensa que tive sobre o que eu achava que era o amor. Eu e você sabemos que nós somos bem menores e que se for da vontade do amor a gente vai se separar e se for da vontade do amor a gente vai continuar. Isso me traz paz, isso me traz tranquilidade, assim como observar o mar e saber quem o controla.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Sobre ir | 2

Um dia eu vou, porque não há nenhuma nenhuma teoria que me impeça de ir. Um dia eu vou porque não há metafísica que me segure. Um dia eu vou porque nenhuma matéria me prenderia. Um dia eu vou porque nada na mente me convence de ficar. Um dia eu vou porque a literatura não há. Um dia eu vou porque o romantismo pode acabar. Um dia eu vou, porque as coisas mudam. Um dia eu vou, mesmo que as coisas não mudem. Um dia eu vou, porque você não tentaria me segurar. Um dia eu vou, porque você não iria me acompanhar.